Antes de mais, espero com este texto desmistificar um pouco a ideia que só a deterioração de uma biblioteca ou viúvas e/ou outros herdeiros “mortinhos” por se verem livre daquela “tralha” que ocupa o espaço de uma bela mesa de snooker pronta a impressionar amigos, são as únicas razões para a venda de uma biblioteca. Talvez noutros tempos essas fossem as principais razões, mas não hoje. O mercado mudou muito desde a geração Santos ou da era Arnaldo Henriques de Oliveira e já não é compatível com essa ideia.
Nesse sentido os leilões têm sido bastante benéficos. Existe enorme preocupação por parte dos coleccionadores em avisar os seus herdeiros sobre o que fazer com os seus livros por ocasião da sua morte. Mais avisadas, melhor esclarecidas, as viúvas já não são as da história que Ruben Borba de Moraes conta sobre um seu amigo a propósito das razões que levam os bibliófilos a não mostrar os seus livros:
«É mais uma questão de complexos. Há casos em que não é. É outro motivo mais corriqueiro, como o de um amigo muito querido que tive e que morreu, não de moléstia do coração, como disseram os médicos, mas de frustração, pelo facto de não poder mais comprar livros, de medo da mulher. O meu pobre amigo só comprava livros pequenos, que podia levar para casa no bolso e escorregar entre os outros sem a mulher perceber.
Quando esse bom homem me vinha ver, não dava a menor importância aos meus livros de pequeno formato. Extasiava-se, folheando os meus in-quartos, babava-se, sobraçando in-fólios. Um dia perguntei-lhe maliciosamente por que não comprava livros grandes. Respondeu-me melancolicamente:”Ela percebe!” Tenho para mim, que a vida inteira sonhou possuir uma Flora, de Martius: uns quarenta volumes in-fólio!
Quando meu amigo morreu, a viúva criminosa vendeu a biblioteca por uma pequena fortuna que nunca imaginou valessem os livros do bibliófilo frustrado. Mas o mais divertido da história é que, daí por diante, passou ela a elogiar sem medida o critério do marido, o tino financeiro que teve em empregar dinheiro em livros que aumentam tanto de preço e não desvalorizam como o nosso cruzeiro, etc., etc.»
O Bibliófilo Aprendiz, S.Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965, pp.23-24
Provavelmente esta “viúva criminosa”, quando o primeiro livreiro chegou e lhe fez a oferta, pensou de si para si: “imagina se eu tenho deixado o meu marido comprar livros grandes!”
Não é assim hoje. As viúvas ou outros herdeiros sabem muito bem o que possuem em casa. Se antes o que pretendiam era ver-se livres daquela tralha e qualquer valor servia, hoje acontece o contrário, avaliam as bibliotecas por excesso dificultando muito o trabalho dos profissionais que, mesmo apresentando uma proposta de acordo com os valores de mercado, vêm essas mesmas viúvas dizer-lhes que as estão a explorar.
Daí que os leilões tenham ganho enorme protagonismo quando a biblioteca é de maiores dimensões, uma vez que lhes é apresentada a ideia que o mercado dita o valor e a leiloeira cobra a sua respectiva comissão, trazendo muito maior confiança e certezas. Mas também é bom que se comece a perceber que, na hora de receber o cheque, a diferença entre o que o livreiro lhe ofereceu e o que recebeu depois de retiradas as respectivas comissões do leiloeiro é pequena e torna-se ainda mais insignificante se o vendedor tiver em consideração que com um livreiro recebe imediatamente o dinheiro e com um leilão são, no mínimo, entre 3 a 6 meses.
Outras razões, no entanto, começam a ganhar peso no mercado dos livros antigos. A primeira é inerente a um novo tipo de bibliófilo, quase inexistente há alguns anos atrás. O bibliófilo hoje já não é aquele que forma ou procura formar a sua biblioteca à medida do Visconde da Trindade (vd. «Como se organiza uma Biblioteca Privada» in
Manuscritos & Livros Valiosos por J.A. Telles da Sylva, v. II, pp. 7-198). Cada vez mais aparece o bibliófilo criterioso não só no tema, mas também no exemplar. O bibliófilo hoje é mais esclarecido, quase como um erudito. É comum aparecerem bibliófilos que procuram, direi assim, sub-temas que antes estavam integrados num tema geral. Apenas como exemplo, se antes se coleccionava literatura portuguesa, hoje colecciona-se literatura portuguesa do séc. XIX ou da primeira metade do séc. XX, reduzindo em muito o número de obras que se desejam.
Ora, este factor, que também se deve ao novo urbanismo, com casas mais pequenas, apenas com as áreas e as salas necessárias, faz com que o coleccionador, em pouco tempo, tenha quase a colecção fechada. Daí que apareçam em cada vez maior número bibliófilos que fazem colecções, vendem colecções e iniciam uma nova com o retorno do investimento.
Por outro lado, este carácter menos fixo, menos permanente das residências, tem feito com que os bibliófilos mais velhos, depois de ver os filhos casados, deixem de sentir necessidade de estar numa casa grande com quatro, cinco ou seis quartos, preferindo um mais acolhedor T1 ou T2. E essas casas, na maioria dos casos, não são compatíveis com grandes bibliotecas.
Existe ainda uma nova mentalidade por parte dos bibliófilos. Depois de coleccionarem durante anos a fio, dedicando quase uma vida aos livros, começam a perder um pouco a vitalidade para ir à procura desta ou daquela obra, visitar os livreiros ou ir aos leilões. É por essa altura que ponderam a hipótese de deixar o seu nome na praça, quase que para a posteridade, num último acto de vaidade que tanto caracteriza o bibliófilo. E quando essa hipótese aparece no pensamento, o leilão é a escolha mais natural, não pelo dinheiro que se possa realizar, mas pelo nome que fica gravado no catálogo.
Em suma, as razões que levam uma biblioteca a aparecer num leilão já não se ficam pelos herdeiros. Factores de carácter urbano como é o tamanho das novas casas, a cada vez maior selectividade por parte dos novos bibliófilos e até uma derradeira vaidade podem contribuir decisivamente para a venda da biblioteca. E claro, uma última razão não muito falada, até por vergonha, mas também presente, a realização de dinheiro, a recuperação do investimento para colmatar falhas de outra ordem, é cenário bastante frequente quando o livreiro ou leiloeiro visitam os coleccionadores.